quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Saudades da Bíblia!




Outro dia estava me lembrando dos velhos tempos. Lá para vinte e cinco anos atrás, bota velho nisso! Pois é: naquele tempo, a gente costumava carregar a Bíblia para onde ia. Ia à escola? Conosco ia a Bíblia. Ia à Missa? Bíblia na mão! Ia ao cabeleireiro, ao ‘mercantil’? A companhia da Bíblia era indispensável. A Bíblia ia para as visitas à família, para a casa da sogra, para a conversa com o chefe, para a merenda – não se dizia ‘lanche’, pois nao havia lanchonetes, exceto nas Lojas Brasileiras, no centro. A Bíblia ia a todo lugar.

Nos grupos de oração, encontros, pregações (não se admitia a palavra ‘palestra’), aí, então, é que a Bíblia aparecia mesmo. E aí, naturalmente, ela tomava destaque especial. Era o centro das conversas, às vezes santas, às vezes santas só na aparência:
- Imagine que no ônibus perguntaram se eu era crente...
- Ih! Acontece comigo todos os dias, mas aí eu aproveito e... tome conversa sobre o senhorio de Jesus!
- E não foi o que fiz? Logo que a senhora me perguntou, aproveitei a deixa e falei até chegar minha parada! No final, acabei rezando por ela ali mesmo.
- Pois é, ninguém pode perder a chance! Só porque a gente está com Bíblia na mão pensam que a gente é crente! Precisamos mostrar que católico também lê a Bíblia.

Ter uma Bíblia católica, porém, não era tão fácil como hoje. Era preciso arriscar encontrar uma em uma livraria do centro da cidade. Quando se conseguia uma era uma festa, motivo de exibicionismo geral. Eram Bíblias grandes, grossas, uns quatro dedos de largura. Quando novas eram exibidas como um troféu. Porém, prestígio mesmo ganhavam quando estavam muito, mas muito usadas mesmo, a capa marcada, rota, cheia de ranhuras. Era sinal de muito uso, de muito serem carregadas, mas nem sempre de muita leitura. O sinal da leitura estava, mesmo, era dentro, onde a história de Noé parecia se derramar em um perene arco-íris: vermelho para as ordens de Deus; verde para as Suas promessas; azul para as verdades eternas e amarelo para as advertências. Isso fazia com que, no mais das vezes, a Bíblia fosse acompanhada de uma indefectível bolsinha com lápis de cores. Afora o arco-íris, havia ainda as observações escritas, os versículos copiados para serem melhor lembrados, os versículos de referência que, não vindo impressos, descobríamos e anotávamos com orgulho, como ‘exímios exegetas’. Bons velhos tempos, aqueles! Bons e simplórios papos:

- Hoje terminei de ler a Bíblia pela quinta vez!
- (silêncio de profunda admiração)
- Vocês nem imaginam o que senti! Foi uma bênção do Senhor (usava-se as palavras ‘bênção’ e ‘Senhor’ preferencialmente às palavras ‘graça’ e ‘Deus’).
- Eu ainda estou na segunda vez, retrucava o outro, humildemente, para logo ser socorrido por um terceiro:
- É, mas você fez o seminário quando?
- Há um ano, mais ou menos.
- Então!?! Ler duas vezes em um ano já é muito! Ouvi dizer que a média é uma vez por ano se você ler quatro capítulos por dia...

Bons velhos tempos! Mas bom mesmo era que conhecíamos de cor todas as passagens que se referiam à Palavra: ‘espada de dois gumes’, ‘penetra até a medula, até as junturas, entre as articulações’, ‘é a verdade, e a verdade liberta’, ‘luz para os nossos passos’, ‘espada da fé’, ‘comida amarga que se torna doce’. Colecionávamos testemunhos de como a Palavra corrige, restaura, alimenta. E lá íamos nós, para cima e para baixo, Bíblia debaixo do braço, embalados pelas primeiras canções do Pe. Zezinho, a anunciar o Evangelho, ‘ao cair da tarde, sem muito – nem tanto! – alarde’.

No mês de setembro, era uma verdadeira competição: todos queriam fazer ou dar cursos sobre a Bíblia e o último domingo, o ‘Dia da Bíblia’, era data importante, comemorada com alegria e gratidão. As pregações eram invariavelmente baseadas em uma passagem bíblica e havia competições veladas de quem sabia mais versículos de cor, com a devida referência, claro.

A Bíblia era usada para tudo: oração, discernimentos, orientações, aconselhamento. Ainda se abria a Bíblia para pedir a Deus a confirmação de uma profecia, de uma palavra de ciência ou sabedoria. Direcionava-se ou redirecionava-se uma oração comunitária inteira, retiros e encontros por causa de uma ‘palavra’ tirada da Bíblia. Recomeçava-se um discernimento já praticamente fechado quando se tinha um direcionamento novo através da Palavra. Orava-se com a Bíblia no início de cada reunião. Bons velhos tempos!

Passam-se os setembros e cá estamos nós, a escrever estas Entrelinhas, cheios de saudade. Nos setembros de hoje, na pregação, pedimos que abram as Bíblias para descobrir que ninguém as trouxe. Referimo-nos a uma passagem que todos deveriam conhecer de cor, mas ninguém jamais ouviu falar. Preparamos todo um encontro sobre um tema bíblico e, logo na primeira palestra, percebemos que todos o desconhecem. Falamos de ‘estudo bíblico’ e as pessoas pensam que nos referimos a uma cadeira da faculdade de teologia. Referimo-nos à Lectio Divina e logo pensam que estamos usando línguas estranhas. Saudade, saudade, saudade!

É. Saudade! Saudade acompanhada de tristeza, perplexidade. ‘Crescemos’, dizem alguns. ‘Não precisamos mais nos exibir com as Bíblias debaixo do braço por toda a parte’. Será mesmo assim? Certamente havia um certo exibicionismo, uma certa tentação de vaidade, de auto-afirmação. Mas, de uma forma ou de outra, na bela ingenuidade típica dos princípios, lia-se a Bíblia, orava-se com a Bíblia, conhecia-se a Bíblia, amava-se a Bíblia. Ela era luz para nossa conduta moral, pessoal, familiar, comunitária. Saudades!

Para infelicidade nossa, os nossos braços e mãos, agora ‘livres’ da Bíblia carregada para todo o lado, mais do que o talvez ingênuo glamour dos começos, não teriam perdido o ardor apaixonado que nos fazia ter o nome e o poder do Verbo no coração e nos lábios? Saudades!

Emmir Nogueira
Co-Fundadora da Comunidade Católica Shalom

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